Dylan saiu angustiado da sua apresentação no trabalho. Estava participando do mais importante processo seletivo da sua vida; aquele era o cargo de seus sonhos. Não parecia, mas já trabalhava naquela empresa há dez anos. Sempre lhe assombrou a relatividade da noção de tempo. Dez anos podem ser muito ou pouco, depende da perspectiva. E do estado de espírito. Para ele, o total passou rápido como uma queda livre, mas alguns instantes específicos foram mortalmente lentos. Aquele dia, por exemplo, parecera-lhe interminável. Vinha se preparando para aquele processo seletivo há anos, "desde que entrou na empresa, na verdade", como dizia. Todavia, no momento mais importante, uma sucessão de eventos transformou o que deveria ser a sua maior conquista em um verdadeiro fiasco. Ele imprimiu o documento errado, o projetor não funcionou, sua voz falhou diversas vezes. “Imprevistos”, alguns colegas lhe disseram tentando consolá-lo. Porém, no fundo, ele sabia que, apesar de o acaso comandar alguns aspectos de seu destino, ele tinha que se preparar melhor para as contingências. Ele podia ter verificado o documento, ter levado um cabo extra para o projetor, não ter ingerido álcool na noite anterior, enfim, uma série de ações que, se não remediassem todos os problemas, com certeza, teriam mitigado seus efeitos. Ele se culpava amargamente. Uma auto sabotagem inconsciente? Ele não sabia se tinha perdido o desejo pelo trabalho ou pela vida em si. Tinha vontade de gritar, chorar, correr, fugir dali. Ele precisava extravasar.
Pensou em telefonar para seus pais ou para alguns de seus melhores amigos, mas sabia que de nada adiantaria. Sua mãe provavelmente lhe diria que os eventos aconteceram da melhor forma possível, porque Deus assim o quis, e seu pai o culparia e diria que ele não se preparou de forma adequada. Ou ambos diriam que a razão do fracasso fora a sua negatividade. “Você precisa de pensamentos positivos, Dylan”, diria sua mãe. E ela listaria todos os insucessos de sua própria vida ou as misérias da sociedade, como se a situação negativa de alguém servisse de consolo para o mal-estar de outros. O eterno "você não vai comer o feijão? Com tantas pessoas passando fome no mundo..." Comer ou não o feijão não iria acabar com a fome mundial, porém. Dylan tinha, ao menos, empatia pelo próximo e essas comparações sempre o deixavam mais triste. E aquela obrigação de ser feliz o oprimia. Positividade tóxica ou ignorância? Seus pais tinham boas intenções, é claro, mas o método era falho e os fins não justificam os meios.
Ele sabia exatamente com quem queria conversar, mas ela não estava disponível. Ela, que lhe consolaria tão bem com poucas palavras ou apenas um abraço. Ela, que sempre lhe escutara, por doze anos. Que estivera tão presente em sua vida. Agora estava ocupada demais na morte - quem sabe no céu, no limbo ou no inferno. Nem ele sabia mais. Ele não sabia se conseguiria acreditar em qualquer existência divina depois que Estela falecera de sabe-se-lá-o-que-talvez-suícidio-provavelmente-overdose-de-remédios-controlados-que-não-foram-controlados-suficientemente. Se Estela estivesse viva, o que ela diria? Possivelmente deixaria que Dylan falasse mal de todos os membros da empresa, reclamasse das injustiças do sistema capitalista e fizesse reflexões sobre o que Schopenhauer escreveu em relação ao sofrimento humano. E então ela faria suas próprias observações filosóficas como uma boa cientista social. Repetiria alguma mensagem motivacional de boteco sem qualquer compromisso com essa positividade tóxica de Instagram. Reclamaria também do fardo da existência humana dando vazão aos anseios dele. Faria alguma piada sem graça que, mesmo na ausência de graça, faria com que Dylan sorrisse. E, por fim, diria que eles dariam um jeito, porque, afinal, eles sempre contornariam e ultrapassariam todos os obstáculos. Juntos.
Lembrou-se de um dia no qual fizera uma prova de proficiência de francês e achara que tinha sido reprovado. Ele correu para a escola onde Estela dava aulas e bastou que ela atravessasse o portão para que tudo no universo voltasse ao seu devido lugar. Ele falou que achava que fora reprovado e ela apenas o abraçou do jeito que fazia desde a adolescência. Foi o bastante. E, quando ele descobriu que fora aprovado, Estela foi a primeira pessoa para quem contou a boa notícia. Como sentia falta dela! Talvez mais do que dela em si, ele sentia falta do sentimento que ela lhe despertou por doze longos anos de relação, divididos entre idas e vindas, brigas, amizade, noivado, casamento, divórcio e reconciliação. Aquele foi o sentimento mais puro que ele já sentira. Dylan e Estela se apaixonaram na época do colégio – quando ela não era nada, ele menos ainda. Ele ainda não era o engenheiro bem-sucedido, com mestrado e múltiplas especializações, ocupante de cargos altos na empresa e excelente atleta. Ela estava longe de ser a professora, estudante de doutorado, escritora, poliglota e ativista política que viria a se tornar na fase adulta. Não foi por uma lista de qualidades que eles se apaixonaram. Dylan achava que as pessoas o admiravam pelos motivos errados: sucesso profissional, aquela (pseudo)intelectualidade que as pessoas chamam de cultura, medalhas nas competições de remo. Aquilo realmente importava, no fim? Generosidade, honestidade, companheirismo e autenticidade não seriam características mais relevantes? A sociedade estava louca.
Tanto Dylan quanto Estela foram admirados por diferentes pessoas. Mas naquele momento do colégio? Não existiam diplomas de pós-graduação, medalhas, notas boas, emprego dos sonhos. Existiam apenas os dois e suas essências. Suas vulnerabilidades mais puras. Se essa não é a forma mais fundamental de amor, ele não sabia o que mais poderia ser. Frequentemente, Dylan se incomodava com a distorção que as pessoas pareciam fazer em relação a esse sentimento. Algumas vinculam o amor a uma série de características. Como se houvesse pré-requisitos a preencher para ter o direito de ser amado: ter beleza, ter dinheiro, ter uma profissão, ter talento, etc, etc, etc. Um conjunto de posses: ter, ter, ter. As pessoas confundem amor com admiração. Dylan sabia que o amor era justamente o contrário daquilo. É um sentimento espontâneo, sem uma razão explícita, mas, por outro lado, uma série pequenos motivos, detalhes estúpidos e pouco razoáveis. "Não existem variáveis independentes que expliquem o amor", dizia a versão cientista social de Estela. A primeira coisa que ele notou nela, na escola, foi seu sorriso triste. A menina do sorriso triste. Mal sabia ele que aquela tristeza a consumiria a ponto de anular sua existência. Não foi a inteligência ou a beleza de Estela que o atraiu. Não foi por isso que ele a amou com todas as forças. Ele se encantara pela sua generosidade, expressa na forma com a qual ela abraçava as pessoas. Ele se apaixonara pelo seu sorriso, que iluminava tudo o que estava em volta, embora escondesse a escuridão de sua alma. Ele gostava até das piadas sem sentido que ela fazia. Ele admirava suas qualidades, obviamente, mas mais importante, ele aceitava e respeitava suas vulnerabilidades. Ele a via e a aceitava exatamente do jeito que ela era sem idealizações frouxas. Ambos se completavam em suas loucuras compatíveis.
Era como se um tivesse acesso ao espírito do outro e isso era fantástico. Em um mundo estranho e frequentemente terrível, parecia que ambos vieram do mesmo planeta. Eles conversavam sobre tudo, desde os assuntos mais banais aos sentimentos mais profundos. Dylan sentia falta até dos códigos que ambos utilizavam para se comunicar. Fazendo uso da linguagem dos jogos de videogame que ambos adoravam, os dois usavam a expressão “te owno” em substituição a “te amo”. Era como se existisse um idioma só deles. Muito mais importante que a língua de Hegel. Existia um mundo que pertencia apenas a eles. Estela sabia quando Dylan estava triste ou com raiva por mensagem de celular. Ele sonhava com ela e sentia quando ela passava por momentos difíceis. Os dois se entendiam pelo olhar como se tivessem a capacidade de se comunicar por telepatia. Mesmo quando estavam longe, Dylan sentia a presença de Estela. Por um grande período, os dois moraram em cidades distintas, então a maior parte do contato era virtual. Mas Dylan nunca sentiu que Estela estava longe. Pelo contrário: ele conseguia sentir sua presença em vários momentos do dia. O maior limite que enfrentamos não é geográfico, mas espiritual. Ele sentia que ela estava com ele como uma parede sólida invisível que lhe servia de apoio. E, mesmo depois de sua morte, ele ainda conseguia visualizar sua imagem. Aquele sorriso sempre triste. Que aparecia e desaparecia desde que ele a conhecera há mais de doze anos. Tempo, aliás, de acordo com Estela, era a evidência empírica mais cabal de que o amor existia. Porque o amor, segundo ela, ultrapassava décadas. Então, se você pensa em uma pessoa mesmo depois da distância física e da marcha inevitável dos ponteiros do relógio, está com um grave sintoma dessa doença que é o amor crônico e agudo. Uma forma de conexão difícil de descrever em palavras. Uma espécie de compreensão mútua e carinho sobrenaturais. E vontade de estar juntos. Mágica.
É óbvio que Dylan se sentia triste pelo desfecho de sua bonita história de amor, porém não deixava tampouco de sentir uma pontada de felicidade por ter experimentado a oportunidade de viver aquilo com plenitude, sem amarras, custe o que custar, com todos os sacrifícios feitos por ambos. Nada parecia um obstáculo intransponível. “Vamos dar um jeito” era mesmo o lema dos dois. O que ele não conseguia entender era como alguém conseguia viver uma vida inteira sem nunca ter sentido isso. Ou pior, como alguém poderia crer que algo como luxúria pode ser melhor que esse sentimento tão raro? Um momento de prazer efêmero traz mais felicidade que anos de companheirismo, compreensão e apoio mútuos? Dylan tinha certeza de que não e as pessoas se iludiam achando que sim. Lembrava-se dos colegas da faculdade que lhe diziam que a vida de solteiro era muito melhor. Coitados, ele pensava. Buscavam suprir o vazio com conexões rasas e passageiras. O vício é um excesso resultante de uma falta. E, mesmo quando alguns zombavam do seu novo estado civil, Dylan respondia, com segurança, que, apesar de divorciado, seu casamento dera certo. Ele nunca se questionou sobre o suposto fracasso do seu casamento. A verdade é que ele não considerava um fracasso na contramão do que todos de seus círculos mais próximos pensavam apesar do divórcio trágico. E quando lhe batia uma ponta de dúvida na cabeça, dizia a si mesmo que teria feito tudo de novo, talvez até mais. E se pudesse voltar os dias, anos, antes da morte de Estela, ele teria apreciado e valorizado ainda mais cada momento, sorriso, troca, abraço. Seu medo era o contrário do que pensavam seus amigos: não tinha medo de se entregar de novo, tinha receio de jamais conseguir encontrar esse sentimento novamente. Talvez a maior parte das pessoas tenha medo de se lançar no amor. Ele não. Tudo que ele queria era se jogar no abismo. Não por acaso, o verbo em inglês é "fall in love".
Depois de Estela, teve algumas relações, mas nenhuma que o fizesse se lançar. Ele percebeu que as pessoas tinham medo de afeto. Era uma pena. Amar e ser correspondido é o único sentimento que pode conferir sentido a um mundo tão absurdo.
Viveria tudo de novo, tinha certeza. Ou quase. Seu único remorso consistia nas últimas palavras que dissera a Estela, por telefone, duas semanas antes de sua morte: "depois eu te ligo com calma". Passou a semana inteira lembrando-se desse telefonema que deveria ter feito, mas foi absorvido pelo trabalho e suas obrigações diárias. Esqueceu. Duas semanas depois, foi ele que recebeu a ligação - de algum parente de Estela - avisando que ela tinha falecido. Causas desconhecidas. "Entendi", ele respondeu. Mas a verdade era que ele não entendeu nada - e jamais entenderia.
E anos mais tarde, naquele dia após a apresentação no trabalho, ele não tinha mais a quem telefonar. O tempo é uma arma invisível. Destruidora. E o depois não existe. Depois eu termino este texto. E, quem sabe, esta história.