Esgueirou-se para mais perto do precipício. Daquela altura conseguia enxergar as montanhas o vale e os córregos finos fluindo como as veias de seu pulso. Ainda sentia as dores das correntes ao redor, latejando profundamente no espaço em que deixara a marca vermelha.
Doera quebrá-las assim depois de enraizar o hábito de servir, obedecer cegamente sem motivos racionais. Racionalidade era justamente o argumento que eles mais utilizavam naquelas épocas dolorosas, afinal era mais racional ter alguém comandando. Era mais racional ter a base da pirâmide servindo. Era mais racional uma minoria pensante no poder.
Esses haviam sido os argumentos de sua vida inteira, baseados em uma suposta racionalidade, porém ele não achava que algo na vida fosse de fato racional. Os instintos gritavam por liberdade, e a liberdade abria asas e fugia.
Olhou para seus pés esfolados, imundos, doentes, em contraposição ao que esperava lá embaixo. Muitos metros de altura, não saberia contá-los. Nunca aprendera a lidar bem com os números. A racionalidade dizia que eles sabiam de tudo, mas 70% da população passando fome não significa nada. Era preciso ver a fome. Era preciso olhar na cara daqueles que se amontoavam nas ruas debaixo da chuva, esperando por uma resposta, uma migalha sequer de afeto, esperando uma salvação. Era preciso olhar bem nos olhos da criança faminta que batia nas vidraças fechadas dos carros parados perante ao semáforo. Era preciso sentir, mas a racionalidade não ensinava nada sobre sentimentos.
Inspirou profundamente o ar rarefeito, porém límpido, e sentiu-se vivo novamente. Vida. Liberdade. Nunca duas palavras pareceram sinônimas. O que será que há no espaço de ambas em um dicionário comum? Ele já não sentia fome, nem frio, muito menos sono. Ele inspirava, desejava, ele aspirava à liberdade, como o próprio oxigênio.E, no entanto, como um desses paradoxos comuns na vida, era preciso dar um salto para atingir aquilo que ele sempre quis.
Sugou o ar mais uma vez como quem se agarra a um bote no meio do oceano. Como alguém que se despede de um jeito triste, mas simultaneamente contente, daquilo que nunca foi seu. Esticou o pé, fechou os olhos, e pulou com a cena difundindo-se em tinta como quadros impressionistas, nada mais que um borrão, uma pincelada de luz. E gritou. Como nunca havia gritado antes. Um grito de liberdade.
Interessante, como se fosse uma visão poética do fim do Estado.
ResponderExcluirOi. Estive aqui dando uma olhada. Muito legal. Gostei. Apareça por la. Abraços.
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