domingo, 27 de março de 2011

Lar, doce lar

Thomás estava sentado no meio fio da calçada. Atrás dele, apenas a porta semi-aberta de sua casa. Sentava com os cotovelos apoiados nos joelhos, meio cabisbaixo. Levara uma bronca da mãe e não suportava os olhares curiosos dos transeuntes. Mas, ainda sim, preferia ser alvo das pupilas daqueles desconhecidos, do que encarar a família na sala de estar. Derrubara um vaso ainda cedo e embora ter assumido a culpa tenha sido um atenuante o ato fora uma falta grave. A mãe gritara, e o pai reforçava com acenos de cabeça, como Thomás era um menino desastrado! Mas o que ele podia fazer? Não se sentia bem naquela casa e sim, derrubara o vaso de propósito. Jogara o maldito no chão, sem dó, sem piedade, sem ao menos um tanto de angústia, pois afinal o vaso era caro. Jogara com a vontade de um leão faminto, com a ânsia de um ser apaixonado. O motivo? Ele não sabia ao certo. Porém, tinha um palpite: era algo relacionado com a casa. Ah, aquela casa. Na esquina da rua ladrilhada. Uma casa bonita, porém opaca. Enfeitada, repleta de móveis, bem decorada. Ele não pertencia aquele local. De jeito nenhum. Thomás, aos seus 6 anos de idade, acreditava piamente que vinha de outro planeta. Um bem distante da Terra. Não conseguia entender as palavras dos adultos, as brigas mesquinhas, o papel sem valor que eles usavam para adquirir comida, roupas espalhafatosas que ninguém gostava, mas mesma assim usava porque estava toda hora naquela caixa chamada televisão. Não entendia o sistema bancário, a bolsa de valores, os discursos políticos, os assassinatos. Não entendia como podia gostar tanto de chocolate e desprezar o mundo que o criou. Sim, Thomás era um tanto esnobe. Desprezava as pessoas, as crianças e os cachorros. Não conseguia pertencer ao mundo. As árvores não pareciam reais, as ruas, as esquinas, os risos, era tudo muito superficial. Tinha que existir um outro mundo. Em sua cabeça, aquela voz de sempre dizia "quero ir para casa". Era sua própria voz que pedia, angustiada, por favor, Thomás, volte para casa! E não era aquela casa que estava às suas costas, pois aquela voz lhe clamava até mesmo quando ele estava em seu quarto brincando com um carrinho. E aquele vaso branco! Que sempre ria quando o menino passava serelepe. Ria e dizia "Thomás, você é um intruso". Ele não escolhera aquele vaso. Aquela casa não era a dele. A única solução que achou foi quebrá-lo aos pedaços, silencia-lo de uma vez, para nunca mais ser chamado de estrangeiro em seu próprio território. E soluçava sentado no meio fio, porque na verdade sentira falta. Aquele vaso era seu único amigo. E agora que tinha sido varrido para longe, tudo que lhe restara era a voz "Quero ir para casa, quero ir para casa, quero ir para casa". Aquela voz, Tristeza, a melhor amiga dos garotos solitários.

Não se preocupe, Thomás, um dia você volta para casa. Enquanto isso, aguente. Sua mãe comprará um novo vaso e talvez você o quebre novamente. 

sábado, 5 de março de 2011

O Homem Invisível

Hoje assisti a um filme sensacional. Estava passando casualmente pelos canais quando caiu em algum Telecine que exibia um filme brasileiro com o título de "A Mulher Invisível". Ouvira falar das más - e das boas também - línguas que era um filme muito engraçado, mas não esperava de jeito nenhum (ainda mais sendo uma pessoa tão preconceituosa com o cinema brasileiro) de que aquele filme, a princípio bobo, me daria uma enorme lição sobre o meu próprio comportamento.
Pois bem, vamos à história. Não do filme, mas de mim mesma (egocêntrica e ultraromântica do jeito que sou). Eu nunca liguei para aquilo que os machistas que se dizem realistas falam que as mulheres prestam atenção em um homem: idade, dinheiro, carro. Primeiro, porque eu me interessava por meninos mais novos. Risca a idade. Segundo, porque eu abomino dependência financeira (o único homem que é autorizado a pagar minhas contas é o meu pai). Risca o dinheiro, os restaurantes caros, os presentes. Terceiro, porque, detesto dependência de qualquer forma, e agora tenho meu carro próprio. Risca a mercedes. Entretanto, como ser humano, eu também tinha inúmeros defeitos. Um deles, talvez o pior, era levantar barreiras. Sim, construir muralhas, afastar-me do mundo, fingir que não queria fazer parte dele. Como na lenda dos Nibelungos (também uma ópera de Wagner e minha história nórdica favorita), quando a valquíria Brunhild é colocada dentro de um círculo de fogo, e o único capaz de atravessá-lo era aquele que a tomaria por esposa - nesse caso o nome dele era Siegfried. Sim, eu esperava o meu Siegfried. Esperei por todos esses anos, achei que o encontrei e perdi, e depois percebi enfim que ele não existia. Esperei todos esses longos anos por aquele que teria coragem de atravessar o círculo de fogo. Não queria carro, jóias, dinheiro. Esperava apenas pela coragem, ou ao menos a vontade de atravessar.
Um dia eu realmente achei que tinha encontrado. Eu tive certeza. Entretanto, era apenas mais uma fábula (ainda por cima não era nada nórdica!) que eu acreditara piamente para fugir da realidade. No filme que eu vi hoje, o homem decepcionado com o amor (Selton Melon, atuação brilhante) se apaixona por uma mulher invisível que só existia na cabeça dele. E eu descobri algumas horas depois do fim do filme que eu era exatamente como o protoganista. Eu me apaixonei por uma pessoa que não existia. Alguém que eu criei, inventei qualidades e o pior, menti para mim mesma dizendo que o cavaleiro de capa azul atravessaria as muralhas porque valia o esforço trazer a donzela solitária. Porém, ao fazer isso, eu só construia mais muralhas, que me separavam da realidade. No filme, o protagonista ignora e deixa de perceber a vizinha verdadeiramente apaixonada por ele, pois distrai-se com a mulher "ideal". Ideal, não real, como depois ele vai frisar. E foi exatamente isso que eu fiz: fechei portas achando que estava as abrindo. Tudo porque eu criei um ídolo e construí um pedestal.
Mas a realidade caiu como um raio.
A estátua do ídolo foi destruída.
E as muralhas continuaram lá.
E possivelmente não existe nenhum Siegfried, pois esse já morreu nos contos nórdicos ou nas óperas germânicas, em algum lugar da Dinamarca talvez, por onde os vikings passaram, deixando um rastro de poeira.
Poeira fina que se esfarela como vento, assim como ilusão, ou como um amor a alguém invisível.

Todo filme tem um fim.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Perseverança

Há exatamente 10 anos, o tenente entrou na sala 504 para fazer um anúncio. Uma propaganda, um aviso. Era sobre a banda do Colégio Militar. As fichas de inscrição já estavam disponíveis e de acordo com ele, elas eram limitadas. Então, você, aluno, que ouvia, tinha que correr. Assim que acabasse a aula, você tinha que correr e pegar a ficha, entregar para o seu pai e fazê-lo assiná-la e então esperar. Uma das coisas que ele disse também naquele dia e repetiu pelos longos, porém breves, seis anos e meio, era que os "fracos desistiriam logo". Antes da escolha do instrumento, o aluno deveria passar 1 ano tocando flauta doce. Sí, Sí, Sí, pausa. Era entediante.Uma angústia. Um suposto desperdício. E às vezes era apenas cansativo. Mas ele já avisara, "os fracos desistiram cedo". Você quer mesmo? Então, persevere.
Alguns anos depois, veio o grupo de jovens do colégio. Embora a descrença com as instituições religiosas, vinha aquela vontade de acreditar em algo, possuir algum conceito de espiritualidade. Os encontros eram maravilhosos. A música, o violão, a cantoria, as danças. Mas então eles diziam "algumas vezes, nossas reuniões serão monótonas e você vai querer desistir". Entretanto, aquela vontade de superação, e até, algumas vezes, de sacrifício. "Perseverança" era a palavra que eles usavam. Você quer mesmo? Então persevere.
Poucas pessoas acreditavam no resultado do vestibular. Seria muito mais fácil aceitar a oferta dos pais e ir para uma faculdade particular. Mas a pública estava ali, a Educação era nosso direito e ela não podia ser paga. Se com 10 anos de idade, ao invés de pensar apenas em jogar videogame ou assistir televisão, ela fizera a prova do Colégio Militar, por que não agora? Você quer mesmo? Então persevere.
O sonho desapareceu perante as cadeiras. Aquilo não era Arte, não como ela pensava que deveria ser. A madeira degradou, aquela imagem de criatividade sumiu. E sobrou apenas a mudança que podia ser. Que talvez fosse. Todavia, novos obstáculos. A desistência de uma vida e a certeza de que assim que acabasse o período de provas, ele iria embora. Mas o futuro não estava no computador ou em desenhar móveis. Ele estava no mundo. Uma decisão precisava ser feita. Você quer mesmo? Então persevere.


Perseverança. Às vezes é tudo que você precisa.
Mas antes de tê-la, é necessário ter vontade.
Os fracos desistem cedo. Aqueles que não conseguem suportar o medo também.